O SUAS possui uma rede de proteção
robusta, mas pouco valorizada, para estruturar o combate à pandemia.
Por:
Renata Bichir (Doutora em Ciência Política pelo IESP/UERJ,
professora de Gestão de Políticas Públicas da EACH/USP e diretora científica do
Centro de Estudos da Metrópole – CEM)
Carolina Gabas Stuchi (Doutora em Direito do Estado pela USP e
professora da UFABC)
Crises abrem
oportunidades para transformações nas agendas de políticas públicas. Afinal,
quem pensaria, até poucos meses atrás, na ampla implementação de uma renda
básica emergencial como aquela instituída pela Lei nº 13.982, de 2020,
estendendo não só critérios de elegibilidade, mas também o valor dos benefícios
que são transferidos via Bolsa Família?
Entretanto,
implementar rapidamente decisões tomadas em conjunturas críticas depende de
investimentos, estruturas, instrumentos e capacidades que não são construídos
da noite para o dia. É nesse contexto que gostaríamos de ressaltar a
importância de estruturas e instrumentos que vêm sendo desenvolvidos no bojo de
uma política bastante relegada no debate público: a política de assistência
social.
De caráter universal,
a política de assistência social oferta serviços e benefícios – como o Programa
Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) –, visando garantir
proteção a diversos públicos vulneráveis – seja pelo ciclo de vida, pela
ausência de renda ou de condições dignas de moradia, por exemplo –, e é um
pilar central de proteção social na conjuntura atual, ao lado do Sistema Único
de Saúde (SUS).
A despeito de
confusões ainda presentes no debate público, a assistência social não se iguala
ao assistencialismo, a ações pontuais e fragmentadas, dependentes da
benemerência de organizações ou particulares. A Constituição de 1988 define a
responsabilidade pública pela assistência social, no tripé conformado também
pela previdência social e pela saúde. Com a NOB-SUAS de 2005, começa a se
constituir o Sistema Único de Assistência (SUAS), em moldes similares ao SUS.
Nesse modelo sistêmico, grandes parâmetros e diretrizes são definidos
nacionalmente – em estruturas de pactuação federativa e com espaços institucionalizados
para a participação de atores estatais e da sociedade civil –, há estratégias
de coordenação federativa das ações, estrutura de cofinanciamento compartilhado
entre governos federal, estaduais e municipais e implementação descentralizada.
Esse arranjo institucional define incentivos para o desenvolvimento de ações
coordenadas, reduzindo o espaço para iniciativas fora da lógica de política
pública nos níveis estaduais e municipais, onde ocorre a implementação das
ações.
Nas últimas décadas, houve um processo importante
de construção de capacidades para formular e implementar ações na política de
assistência, com destaque à disseminação de uma rede de equipamentos públicos
com grande capilaridade nos municípios brasileiros. De acordo com dados do
Censo SUAS de 2019[1], são 8.360 Centros de Referência da
Assistência Social (CRAS) que atendem famílias em situação vulnerabilidade e
realizam o registro das famílias no Cadastro Único; 2.664 Centros de Referência
Especializados de Assistência Social (CREAS), que atendem indivíduos e famílias
em situação de violência ou com direitos violados; e 228 Centros de Referência
Especializados para Pessoas em Situação de Rua (Centro POP). São 20.369 as
entidades sem fins lucrativos inscritas nos Conselhos Municipais de Assistência
Social[2] e integrantes da rede
socioassistencial, com expertise no atendimento de diferentes tipos de público
e na atuação em territórios particularmente vulneráveis. Operando essa rede de
atendimentos, há mais de 500 mil trabalhadores[3], que atuam em diferentes linhas de frente
essenciais para minimizar os efeitos perversos – e desigualmente distribuídos –
da pandemia, seja na realização do Cadastro Único, seja no atendimento da
população em situação de rua, por exemplo.
Estudos recentes[4] demonstram, a partir da análise de
dados do Censo SUAS para o período 2011-2016, que o SUAS têm sido bem sucedido
não só na expansão da oferta de serviços e benefícios básicos ofertados pelos
CRAS, mas também do ponto de vista da redução das desigualdades entre os
municípios brasileiros em termos de infraestrutura e recursos humanos
disponíveis para ofertar esses serviços. Ou seja, demonstram a importância de
ações coordenadas desde o governo federal, o que não elimina o espaço para
decisões locais.
Construir capacidades de implementação de
políticas, por meio de redes capilares que cheguem a públicos particularmente
vulneráveis, demanda não só tempo, mas priorização política e investimentos
robustos, tanto financeiros como em recursos humanos qualificados e valorizados
para atuar na ponta. Transformações recentes na agenda política nacional têm
implicado retrocessos. De 2016 para cá, com o congelamento das despesas
primárias da União por 20 anos, por meio da EC 95/2016, houve queda nos
investimentos na área. Os serviços observaram queda de 35% já no segundo ano do
Novo Regime Fiscal[5], mas a restrição orçamentária atingiu
também as despesas obrigatórias para pagamento dos benefícios de transferência
de renda – BPC e PBF, gerando, como consequência, os efeitos de represamento na
concessão de benefícios e as filas amplamente noticiadas. Os recursos
atualmente autorizados no orçamento são insuficientes inclusive para os
benefícios já concedidos. A situação fica ainda mais grave quando a extrema
pobreza aumenta – 13,5 milhões de pessoas, de acordo com dados de 2018 do IBGE
– e os programas de transferência de renda não são tempestivamente acionados
para cumprir sua função protetiva.
O esvaziamento da agenda
do SUAS no âmbito federal traz de volta o risco do paralelismo e da
sobreposição de ações, com retorno a práticas voluntaristas e fragmentadas,
contrárias às diretrizes constitucionais da assistência social. Mesmo a
regulamentação recente da renda emergencial integra-se somente de modo parcial
e limitado às estruturas do SUAS, gerando, inclusive, efeitos de confusão para
a população, seja devido à decisão de não compartilhar o bônus político do
pagamento do benefício com os gestores locais, seja por desconhecimento da
estrutura do SUAS. Cabe lembrar que provisões suplementares e provisórias para
famílias em situação de vulnerabilidade temporária e de calamidade pública,
como a renda emergencial, estão definidas na Lei Orgânica de Assistência Social
(LOAS) como benefícios eventuais que deveriam integrar as garantias do SUAS, o
que não se verifica no atual regramento.
Face à pandemia de
COVID-19, as provisões da política de assistência social se mostram essenciais,
inclusive do ponto de vista da mobilização de estruturas de implementação que
foram sendo consolidadas nos últimos anos. Os trabalhadores do SUAS são
responsáveis por assegurar operações ágeis e procedimentos regulados para a
atenção excepcional junto aos mais vulneráveis, em especial à população que não
possui condições básicas para sua sobrevivência cotidiana através do trabalho.
Entretanto, é necessário fortalecer a coordenação e a governança dessa rede
socioassistencial, evitando dispersão, fragmentação e sobreposição de ações,
além de falta de investimentos adequados.
O enfrentamento da
crise atual é uma excelente oportunidade para consolidar e ampliar estruturas
de proteção social que vêm instituídas desde a Constituição de 1988, em
diferentes áreas, tanto em termos de proteção universal, como o SUS, como na
articulação de universalidade e equidade, olhar para os mais vulneráveis, como
no caso do SUAS. O grande desafio é construir ampla coalizão de apoio a essas
estruturas, para além de esforços conjunturais, consolidando não só a noção direito
à proteção social, mas garantindo investimentos para sua manutenção.
[2] Segundo dados do CNEAS disponíveis em: https://aplicacoes.mds.gov.br/cneas/publico/xhtml/consultapublica/pesquisar.jsf
Documento
·
HTTP://APLICACOES.MDS.GOV.BR/SAGI/DICIVIP_DATAIN/CKFINDER/USERFILES/PDF/TRABALHADORESDOSUAS.PDF PDF
[4] BICHIR, R. M.; SIMONI Jr, S.; PEREIRA, G.
Sistemas nacionais de políticas públicas e seus efeitos na implementação: o
caso do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Revista Brasileira
de Ciências Sociais, Vol. 35 n° 102/2020.
[5] JACCOUD, L. Os desafios da proteção
socioassistencial em contexto de restrição fiscal. Revista Congemas, 2019.
Disponível em:
Documento
HTTPS://CONFERENCIADEASSISTENCIASOCIALHOME.FILES.WORDPRESS.COM/2019/09/REVISTACONGEMAS.PDF PDF
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